31.1.09



Projecto "Your text here" produzido em 2006 para uma convocatória de mail art promovida por Antonella Grota Giurleo para a biblioteca Gallaratese de Milão

30.1.09



Horta / 1988

Cinquenta e nove minutos de um rádio chamado Óscar.

Pequeno almoço no Volga, galão e torrada,
Cem escudos.

Almoço na Lusa, com sopa e Tuborg,
Quinhentos escudos.

Jantar na Central, dois pregos e Bavária (crise),
Duzentos e cinquenta escudos.

Ao domingo um lanche no Internacional, chocolate quente e sandwich de queijo,
Duzentos escudos.

Segunda-feira o Independente na Tabacaria da Sorte,
Cento e cinquenta escudos.

Telefonar, adormecer e acordar.

29.1.09



Ruído gripal

Oiço água a correr dentro da minha cabeça.
Será uma torneira mal fechada?
Ou será uma imprevisível rotura?

Oiço água a correr dentro da minha cabeça,
Mas não a vejo sair.
Talvez corra directamente para o ralo
Que se me abre na planta de um pé.

Oiço água a correr dentro da minha cabeça.
Olho-me no espelho e imagino
Repuxos saindo dos meus ouvidos.

Oiço água a correr dentro da minha cabeça…
…mas apago a luz.

28.1.09



Pequenas coisas

Lembro-me do fato de veludo que usei no casamento da tia Isabel. Lembro-me da gabardina Lino verde tropa. Lembro-me do sobretudo com o tecido em espinha preto e branco. Lembro-me dos sapatos baixos, castanhos, de biqueira quadrada que “herdei” do meu pai. Lembro-me do chapéu caqui que inventei a partir de umas calças Lois. Lembro-me dos sapatos de verniz. Lembro-me dos suspensórios suíços. Lembro de uma camisola que a Beatriz apenas começou. Lembro-me das luvas de pele de veado também “herdadas” por espírito de reciclagem ou fascínio. Lembro-me de uma camisola preta com gola dupla. Lembro-me das botas de cano alto trazidas da Benedita. Lembro-me da minha viola eléctrica que apesar de ser em segunda mão foi comprada com o primeiro dinheiro ganho. Lembro-me daquela ocarina que arranjei não sei de onde. Lembro-me das colecções de desenhos que ciclicamente fui deitando fora. Lembro-me de uma canção chamada “Sonho de cristal”.

27.1.09



O mais belo poema sobre o amor...



“O que será (Flor da terra)”

O que será, que será?

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças anda nas bocas

Que andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos

E gritam nos mercados que com certeza

Está na natureza

Será, que será?

O que não tem certeza nem nunca terá

O que não tem conserto nem nunca terá

O que não tem tamanho...

O que será, que será?

Que vive nas idéias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Que está na romaria dos mutilados

Que está na fantasia dos infelizes

Que está no dia a dia das meretrizes

No plano dos bandidos dos desvalidos

Em todos os sentidos...

Será, que será?

O que não tem decência nem nunca terá

O que não tem censura nem nunca terá

O que não faz sentido...

O que será, que será?

Que todos os avisos não vão evitar

Por que todos os risos vão desafiar

Por que todos os sinos irão repicar

Por que todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno vai abençoar

O que não tem governo nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo...


Chico Buarque, 1976

26.1.09



A diversidade é o nosso único tesouro.

Sempre fui um anti-generalista. Toda a vida me vi confrontado com opiniões-catálogo do tipo : os portugueses são fatalistas; as mulheres são mais persistentes; os negros são melhores desportistas; os arquitectos tem uma pancada; aquela turma é péssima; etc. Confesso que, não obstante o meu propósito, me deixei muitas vezes levar por apreciações fáceis que rotulam o mundo e nos tornam a vida menos complicada. Consciente do que acabo de expor tenho procurado sistematicamente questionar os tribalismos exacerbados que confrontam raças, países, religiões, partidos, clubes, regiões, cidades, famílias, estatutos, bairros, profissões, nível de vida, etc.
Cada um de nós carrega dentro de si um flash. É um flash único impossível de clonar ou imitar. Cada gémeo é também um flash especial por mais verdadeiros ou falsos que estes sejam.
Enquanto professor não distingo turmas boas de turmas más, nem considero licito somar Marias com Rudolfos e tirar a média. Cada Carlos, cada Ana, são em si uma consequência milenar de eventos e património genético acumulado, balizados pelo caos que a todo o momento nos molda a consciência. Cada individuo é dono de um tempo que ninguém mais viu daquele lugar. A singularidade de cada individuo é uma parcela fundamental na soma que constitui a riqueza do património da espécie humana. Educar robotizando é perder “tempos”. Corromper a capacidade de autonomia a troco do controlo de uma estabilidade qualquer é reduzir o horizonte de crescimento do conhecimento e portanto enviesar o futuro.
Enquanto arquitecto não acredito em linguagens arquitectónicas, acredito no espaço. Não acredito em linguagens arquitectónicas divinas, puras, académicas, clássicas, modernas ou pós-modernas, revolucionárias, do povo ou do lugar. Pensando melhor, e compreendendo o papel que desempenham na invenção dos espaços, acredito nelas todas, nelas todas e em muitas mais coexistindo num mundo diverso e tolerante.
Proteger é sufocar, depender é morrer, dirigir é matar. Que importa o que os une, mais vale o que nos distingue.
Mais vale tudo o que se distingue.
Mais vale todas as notas de música, todas as cores, todos os sabores, todos os lugares, todas as culturas, todos os estilos, todos os cheiros, todos os tempos, todas as idades, todos os ruídos.
Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, verde, amarelo, azul, vermelho, roxo, laranja, castanho, branco, preto, norte, sul, este, oeste, gato, rato, pássaro, peixe, arroz, batatas, massa, inhame, maçã, banana, ananás, morango, praia, campo, montanha, cidade, medieval, barroco, clássico, moderno, high tech, rosa, dália, narciso, cravo, José, João, Hipólito, Gustavo, pão, azeitonas queijo, presunto, maduro, verde, espumante, morangueiro, alfacinha, tripeiro, corisco, camponês, arquitecto, informático, polícia, treinador, madeira, pedra, cerâmica, ferro, lagoa, lago, rio, mar, atol, ilha península, istmo, deserto, savana, floresta, pântano, muçulmano, católico, judeu, hindu, anjo, arcanjo, santo, demónio, barco, avião, carro, comboio, chuva, sol, neve, nevoeiro, Primavera, Verão, Outono, Inverno, frio, calor, humidade, ozono, tasca, snack, restaurante, cantina, exército, marinha, aviação, chapéu, boné, gorro, boina, gabardina, samarra, sobretudo, blusão, galego, basco, catalão, castelhano, Europa, África, Ásia, América, Lua, Sol, Terra, Mercúrio, drama, sátira, comédia, epopeia, sapato, bota, sandália, rua, praça, beco, rotunda, fonte, poço, cisterna, barragem, telefone, correio, telegrama, pombo-correio, rádio, televisão, jornais, internet, rabanadas, filhós, sonhos, azevias, cadeira, maple, sofá, puf, paf!, splash!, boing!, crash!, café, bica, italiana, simbalino, passo, trote, galope, corrida, nova, crescente, cheia, minguante, fogo, terra, ar, água, homem, mulher, idoso, criança, lápis, pincel, caneta, marcador, si, lá, sol, fá, mi, ré dó.