30.3.09



Palavras ditas

As “palavras por dizer” estão todas arrumadas no grande armazém dos sons. Convocadas pelas almas em grupos coerentes são encadeadas em frases e submersas num banho de cal. Brancas e unidas as palavras ainda não são nada. É o pensamento requisitante que lhes infunde a intenção de decidir dispara-las ou não no alvo escolhido. Nem sempre o disparo é certeiro. Por vezes há problemas. Em alguns casos, não sendo accionadas pela língua endurecem e sublimam-se ainda dentro da câmara. Noutros casos rebentam dentro do instrumento estilhaçando-se aos pedaços nos corpos de inocentes passantes. Casos há, em que as palavras são levadas pelo vento ou roubadas durante o trajecto, perdendo-se no espaço em paradeiro desconhecido. Estas nunca mais voltam.
Na generalidade não é isto que se passa. Quando alguma alma convoca a frase “Uma ginja por favor!” normalmente acerta num taberneiro. Ou quando a frase configura um “tem aqui um belo menino” normalmente esbarra numa mãe cansada.
As "palavras ditas" não sendo na maioria dos casos poluentes raramente são recicláveis. “Está dito está dito!”. Ainda assim serão de alguma forma recuperáveis na citação e pela leitura. É importante que assim seja pois cada frase encerra uma missão urgente cujo cumprimento só a ela foi atribuído pelo que culmina na volatilização da sua sonoridade.
Ainda assim há gravadores de cassetes.
As "palavras ditas" são as flechas dos nossos heróis mas também as dos nossos adversários.
Temos que aprender a sobreviver nesta selva dos sons e ter a capacidade intuitiva de saber quando nos devemos esquivar ou quando nos devemos entregar.
Não obstante as palavras em si, são apenas cal e não desejam nenhum mal.
São sempre os lábios que as conspurcam, contaminam e infectam ou então que as fazem douradas, deliciosas ou ardentes.
Algumas "palavras por dizer" são desejadas "ditas" ainda antes de serem convocadas. São aquelas para as quais abrimos um negativo impresso em baixo relevo na nossa mente ansiando que tragam o banho proveniente de boca específica.
Se tardam lavram vazios. Se tardam muito abrem túneis. E se não chegam podem acabar por nos esvaziar por dentro.
Mas se chegam curam, infundem vida e provocam um milagroso rejuvenescimento.

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