5.2.09



Cortar o pão


Este Natal a minha irmã deu-me uma belíssima faca eléctrica.
Quando regressei a casa fui logo experimenta-la num pedaço de broa de milho que lá tinha.
Para minha grande surpresa o pão resistiu ao apetrecho o mais que pôde e por fim, sacando do seu peculiar carácter húmido e farinhento, destruiu a minha expectativa de o transformar em pedaços planos.
Desanimado com a experiência fui-me deitar.
Não sei se por este motivo ou por acaso sonhei toda a noite com o “Shining e a cara do Jack Nicholson”.
Não tendo sido portanto uma noite descansada, tomei os meus flocos e maçãs com um ar circunspecto, e saí decidido a comprar outro tipo de pão para poder finalmente inaugurar dignamente o meu presente.
Quando me plasmei diante da estante do supermercado da secção do pão fui surpreendido com uma pilha de pão já fatiado, que eu aliás usualmente compro por uma questão prática e económica. Prática porque é só abrir e sacar uma fatia, e económica porque as fatias finas fazem render mais o pão.
Curiosamente, naquela manhã, ao olhar para aquela pilha de pão fatiado não era capaz de a dissociar do meu sonho de terror.
A verdade é que não comprei pão no momento e esperei pela tarde para me dirigir a uma padaria tradicional onde por fim arranjei um pão inteiro. Já em casa, desembrulhei-o, mas cortei-o com uma faca normal. Pareceu-me ser uma espécie de reconciliação que, respeitando um ritual, se cumpria assim tão simplesmente e em plenitude.
Lembrei-me então de algo que a minha mãe nos ensinou, quando éramos pequenos, e que hoje seria, neste mundo cheio de absurdas obsessões de higiene, um acto “politicamente” incorrecto. Cada vez que um pedaço de pão nos caia ao chão em casa, tinhamos de o apanhar e em vez de o deitar fora deveríamos beija-lo.
Lembrei-me também dos rituais de fabrico do pão sempre acompanhados de algum misticismo e respeito, alimento cujo carácter sagrado se encontra acima de qualquer outro.
Então percebi.
Provavelmente esta faca eléctrica irá ser de uma grande utilidade nas minhas próximas aventuras gastronómicas, mas não a vou usar nunca para cortar pão.
Quanto ao pão fatiado do supermercado por minha vontade não sairá da estante.

2 comentários:

Alguém à bordo. disse...

Maravilha... Esses delírios cotidianos que fazem parte de nossa história, quando asssim bem contados, são tão bacanas...

o passageiro disse...

É só querer olhar...