14.11.08



QUEIMAR LIVROS


“...
- Perguntaste-me quando começou o nosso trabalho, como e onde? Pois bem, na realidade o ponto de partida remonta à época chamada Guerra Civil. Embora no texto do nosso regulamento a data seja anterior. O facto é que não tínhamos nenhum papel a representar antes da aparição da fotografia. Depois, veio o cinema... no princípio do século XX. Depois a rádio. A televisão. O elemento massas entrou em cena.
Montag continuava imóvel, sentado na cama.
- E esse elemento massas veio simplificar os problemas – continuou Berry – Primeiro, os livros só interessavam a minorias, aqui e ali. Podiam permitir-se ser diferentes. O mundo era vasto. Depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos, de bocas. A população dobrou, triplicou, quadruplicou. Os filmes e a rádio, os magazines, os livros foram nivelados, normalizados sob a forma de uma espécie de pasta de bolo. Estás a perceber?
- Parece-me que sim.
-Estás a ver o quadro. O homem do século XIX, com os seus cavalos, seus cães, os seus comboios; lentidão de movimentos. Depois a aceleração, a câmara. Os livros resumidos. As condensações, os digest, os gráficos; tudo subordinado ao mote, ao fim percutante.
-O fim percutante – disse Mildred, aprovando com a cabeça.
-Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de novo para darem traços de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionário de dez linhas. Estou a exagerar um pouco, claro. A minha alusão aos dicionários é apenas uma referência. Mas para muita gente, Hamlet (tu conheces certamente os títulos, Montag; a senhora talvez os tivesse apenas ouvido citar), para muita gente, dizia, Hamlet era apenas um resumo de uma página, num livro que declarava: «Finalmente, todos os clássicos ao seu alcance; o seu nível de conhecimentos igual ao do seu vizinho». Estás a ver o que queremos dizer? Da sala das crianças ao colégio e do colégio à sala das crianças. Eis o traçado da curva intelectual para os últimos cinco séculos.
...
-As aulas tornaram-se mais curtas, a disciplina é relaxada, a filosofia, a história, as línguas abandonadas, o inglês e a sua pronuncia abastardados pouco a pouco e, finalmente quase ignorados. Vive-se no imediato. Apenas conta o trabalho e o após trabalho, a dificuldade da escolha de uma distracção. Para quê aprender qualquer coisa , além de carregar botões, ligar computadores, enroscar parafusos e porcas?
...”


Acabei de ler “Fahreheit 451” escrito por Ray Bradbury em 1953. A obra, traduzida para português por Mário Henrique Leiria e editada pelo Público na Colecção Mil Folhas, é de leitura completamente acessível e empolgante.
O que me surpreendeu neste livro foi sobretudo a forma antecipatória como o autor prevê que os meios de comunicação evoluam, designadamente no que diz respeito à televisão. O enredo, que se passa num futuro próximo do ano 2300, consiste fundamentalmente na descrição de uma sociedade tecnologicamente muito evoluída, mas absolutamente controlada pelo sistema instalado. No cenário ficcionado pelo autor esse controlo é assegurado pelos meios de comunicação orientados ferozmente para a inibição da leitura (a simples posse de livros é considerada crime) e para o entretenimento perpétuo das mentes.
Fora desta sociedade de cariz urbana existe gente sobrevivendo no deserto interurbano ou clandestinamente dentro dos aglomerados. Para combater os dissidentes, sobretudo aqueles que resistem à supressão da leitura estão os bombeiros que, numa sociedade onde as coisas já não ardem por acidente, se dedicam a queimar todos os focos de livros que detectem.
O livro, de uma interpelante actualidade, não se esgota nesta breve sinopse. Foi para mim uma agradável revelação, ao ponto de me sentir obrigado recomenda-lo vivamente.
Não será por acaso esta minha identificação com as inquietações do autor. Há nove meses atrás cortei radicalmente com a televisão e, surpresa das surpresas, voltei a ter uma casa com música, desenho, pinto, escrevo, e toco piano. Tenho novamente o meu projector a funcionar e vejo ou revejo cinema. Redescobri o prazer de andar a pé ou de bicicleta. Tenho tempo e faço muito mais.

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