22.11.14

"Uma nuvem sobre a cabeça" / Conto Infantil / José Kuski

UMA NUVEM SOBRE A CABEÇA

            Ao mau amigo Tó Zé, que inventou o dizer (ao deitar) “Vai com atenção…”, conceito que me inspirou escrever este conto.

Tomás olha para o tecto escuro mas já não o vê. Tenta calcular a distância que vai do seu nariz ao candeeiro mas sabe que antes que acabe de fazer as contas já deverá estar a dormir.
Nessa noite, no entanto, o tecto nunca mais desaparecia e, de repente, a luz do telemóvel devolve-lhe a cor branca que o define. Tomás volta-se para a mesa de cabeceira e lê em diagonal uma mensagem: “As nuvens não passam de sacos de sonhos”. Alguns segundos após, suprimida a luz do ecrã do aparato, o tecto regressa à sua posição de desaparecido.

Tomás, ao contrário dos outros dias, não tinha sono. Aquela frase estranha rodopiava dentro da sua cabeça e parecia não querer ir embora. Sentou-se na cama, calçou os chinelos às escuras, e, com a mão à frente, dirigiu-se à frestinha de luz que vinha do corredor. Abriu a porta do quarto devagar e, enquanto espreitava, apercebeu-se que, naquele dia, o silêncio da casa tinha chegado bem mais cedo.
            -Já estarão todos a dormir? – pensou o Tomás. – Que estranho? -  Ainda agora a mãe lhe tinha dado um beijo e lhe desejara uma boa noite!...
Avançou um pouco pelo corredor até poder espreitar o quarto do irmão. Empurrou a porta devagarinho e verificou que estava tudo apagado e o Gabriel de olhos fechados. Deu mais três passos e espreitou para dentro do quarto dos pais. Só conseguiu ver a luz dos números vermelhos do despertador mas a silhueta dos cobertores permitiu-lhe concluir que também já estavam deitados e a dormir. Só faltava espreitar o quarto do avô Maurício. Para lá chegar até podia ir de olhos fechados. O cheiro do perfume “Boalis” poderia guiá-lo até ao avô como uma abelha que procura a flor. (Era um cheiro que lhe dava alegria e cuja ausência provocava saudades. O avô, volta e meia, passava uma temporada lá em casa, dormia no quarto de hóspedes, mas durante o dia ninguém sabia onde andava). Quando o Tomás, por fim, espreitou o quarto do avô, quase tombou de susto. Uma coisa estranha, como que um grande pedaço de algodão branco, parecia flutuar sobre a cabeça daquele. Foi-se aproximando devagar e, em determinados ângulos, aquela coisa de aspecto fofo, até poderia muito bem ser uma nuvem.
            -Uma nuvem cá dentro? Que disparate! – pensou o Tomás
Tateou um pouco a medo para se aperceber da textura daquela coisa e pareceu-lhe tocar na superfície lisa da água, mas não ficou molhado. Subiu então a um banco para melhor poder espreitar o que haveria dentro da nuvem. Aventureiro como era, meteu a cabeça dentro e, enquanto se formava na sua mente a visão de uma de paisagem de pernas para o ar, enfiou os dois braços para ver melhor e, num ápice, caiu lá para dentro completamente desamparado. A queda durou apenas alguns segundos mas que lhe pareceram uma eternidade. Sentiu o impacto agradável nas costas como de quem cai sobre a relva por cortar. Abanou a cabeça, sacudiu as mãos, e pôs-se de pé.
- Mas como é que uma nuvem tão pequena por fora podia ser tão grande por dentro?
- questionou-se o Tomás.
Estava o nosso herói a tentar explicações para esta situação tão estranha quando, de repente, recebe uma palmada nas costas de uma voz juvenil que lhe diz:
- Despacha-te que já estamos atrasados!
- Atrasados para quê? – retorquiu automaticamente.
- Para a escola, para que havia de ser?…
Tomás nem teve tempo de lhe ver a cara. O passo apressado do rapaz de mala de couro às costas nem lhe permitia olhar para trás. Levantou-se e seguiu-o então por uma estrada de terra bordeada por flores silvestres dos dois lados. Era difícil acompanhá-lo mas não impossível e, em pouco tempo, os dois rapazes caminhavam a par na direcção de um edifício todo branco com uma grande porta de madeira escura, no meio da qual sobressaía a figura do professor que não tirava os olhos deles.
            - Vamos, meninos! Já devíamos ter começado a aula!
            - O rapaz passou pelo professor como uma bala e desapareceu. Já o Tomás, que tencionava segui-lo, foi barrado pelo braço firme do mestre-escola.
            - Diga-me lá que maneiras são essas de vir para a escola? Descalço, em pijama e sem a mala, eu diria que veio directamente da cama!
Um pouco atrapalhado e confuso, o Tomás respondeu:
- A..a…a mala está em casa porque caí dentro da nuvem dos sonhos do meu avô.
Risada geral na classe.
            - Caluda, meninos, isto não é um circo!... Bom, e, quanto ao menino dorminhoco, por esta vez, pode entrar. Sente-se aí ao fundo que eu já lhe trago uns sapatos velhos para não se constipar.
            Quando Tomás se sentou na carteira do canto da última fila sentiu um ataque de sono tão grande que mal conseguiu ouvir o assunto da aula dessa manhã. Enrolou os braços debaixo da cabeça e deitou-a sobre o tampo.

No dia seguinte acordou, como todos os dias, deitado na sua cama com um beijo da mãe e o cheiro a café que o pai acabara de fazer na cozinha. Não conseguia perceber se tudo tinha sido um sonho ou se aquele simpático professor o tinha devolvido a sua casa. Por outro lado, quem seria aquele miúdo que estava dentro do sonho do avô tão preocupado em portar-se bem nos sonhos?
- Bah! - bradou o Tomás, falando sozinho – Claro que foi um sonho!
Espreguiçou-se, lavou-se e vestiu-se decidido a não contar o segredo a ninguém.
Na cozinha, o pai já tinha preparado a mesa do pequeno almoço. A mãe e o irmão já estavam sentados à mesa.
            - Bom dia! – disse a mãe – Olá! Então dormiu bem, o meu pequenino?
Tomás, que ainda estava com um bocadinho de sono, não sabia bem o que responder.
Sorriu, hesitou, e quando ia dizer alguma coisa entra o avô com a sua voz matinal:
-Que sonho mais estranho tive hoje!
Tomás fitou-o com apreensão. E o avô continuou:
- Sonhei com o meu segundo dia de aulas; chegava atrasado, como sempre aliás, e, à porta, estava o meu professor Pinheiro com sua infinita paciência à espera dos últimos gaiatos. E, vejam lá, o que a nossa cabeça vai buscar: a meio do caminho apareceu um miúdo descalço e em pijama que me perseguiu até à escola; e ainda disse que se tinha esquecido da mala porque tinha caído dentro da nuvem do sonho do avô dele; dormiu a aula toda e, quando o professor a deu por terminada, ele ainda ficou por lá na mesma posição.
Tomás engoliu em seco e nada disse com receio de que o avô o tivesse reconhecido porque, afinal, o miúdo da mala era, nada mais nada menos, que o seu...
- Não! Não pode ser! - pensou o Tomás. – Deve ser tudo uma coincidência.
Nesse momento a buzina do carro da mãe soa como um alarme e os dois irmãos correm para a porta do carro para arranjar o melhor lugar.
A manhã passou depressa. Na aula não prestou nenhuma atenção à professora Fátima que, nesse dia, teve que corrigi-lo menos vezes que o habitual. Ao fim da tarde, foi com o seu amigo Vasco andar de bicicleta para o Jardim Municipal. Fizeram as suas habituais corridas e derrapagens, mas o Tomás nunca abordou o tema da noite anterior, até porque ele próprio tinha muitas dúvidas acerca do que se tinha passado.
Depois do jantar hesitou entre adormecer o mais depressa possível e esquecer aquela confusão toda, ou ficar acordado até todos adormecerem para ver se a nuvem ainda lá estaria.

De repente, quando já estava deitado e de luz apagada, uma luz ténue, acompanhada de um pequeno zumbido, ilumina o ecrã do seu telemóvel para dizer por escrito: “Sonhos são sonhos e não são bons nem medonhos”. Ui! Esta falava em medonhos e, mesmo que o sentido fosse outro, a frase não deixou de provocar um arrepio no pobre do Tomás. Sentou-se na cama enquanto a luz do ecrã se mantinha acesa e saltou até à porta para abraçar alguém, mas, quando pegou na maçaneta da porta e a abriu com jeitinho, deparou-se com um silêncio igual ao da noite anterior.
- Já estariam todos a dormir?  - perguntou-se o Tomás.
Decidido a ir ver se o avô continuava com aquela nuvem sobre a cabeça, passou rapidamente pela frente dos outros quartos confirmando se os seus ocupantes já estavam a todos a dormir. Quando se preparava para entrar no quarto do avô, estacou repentinamente com uma imagem que reteve na vista, de raspão. Deu uns passos atrás e espreitou melhor para o quarto do irmão.
            - Não, não pode ser! A nuvem hoje está sobre a cabeça do Gabriel!
Entrou no quarto muito devagar porque ouvira a mãe dizer que o irmão tinha um sono leve. A nuvem estava ali. Mais pequena, mas igual de redonda e fofa. Com jeito para não derrubar o candeeiro, subiu para a mesa de cabeceira, buscou uma posição para espreitar lá para dentro tentando evitar cair como tinha sucedido na noite anterior. A paisagem parecia idêntica; por isso tentou alcançar uma vista do edifício da escola quando, sem saber bem como, foi sugado para o interior da nuvem. Sentiu-se dessa vez enrolado num pano escuro que se mexia e, quando sentiu o impacto da queda, tentou desembaraçar-se dele mas este parecia estar a fazer o mesmo complicando-lhe o seu objectivo. Por fim, solto do pano preto, rebolou por um pequeno talude e deu com o ombro no tronco de uma enorme árvore de deliciosa sombra. Ao longe, o pano escuro parecia continuar a tentar desembaraçar-se de si próprio ganhando altura. Gradualmente, foi tomando forma, assumindo uma silhueta familiar.
            - Oh não! O Avô Maurício! – disse para si o Tomás.
Enquanto procurava uma explicação para o que se estava a passar, o avô, no seu habitual passo ligeiro, olhou em redor para tentar reconhecer o lugar, deu de caras com o rapaz, e dirigiu-se imediatamente na sua direcção. Assim que chegou mais perto, reconheceu-o de imediato e perguntou com uma voz amiga, como era seu hábito:
- Tomás, que fazes aqui? Também pertences a este sonho?
Sem saber muito bem porquê, abanou a cabeça negativamente. E o avô continuou dando um tom de segredo à frase:
            - Então tu também sabes o segredo das nuvens?
            - Sim, Avô, e até já estive no seu sonho.
            - Qual? O da escola?
            - Sim, então não vê que eu sou o miúdo de pijama?
O avô pôs uma cara de espanto, mas após alguns segundos de silêncio disse:
            - Mas tu sabes que isto pode ser muito perigoso? Nem sempre se consegue regressar a tempo antes que o sonhador acorde. Nesse caso, nós nunca mais voltaremos a sonhar até que um dia ele torne a sonhar connosco. O truque para regressar sem consequências é arranjar maneira de adormecer aqui dentro do sonho.  
            - Como me aconteceu na noite passada!
            - Exacto! Foi óptimo teres adormecido na sala de aula.
            - Então e hoje? – inquiriu o Tomás – Se eu bem percebo o Avô também saltou para dentro do sonho do meu irmão?
            - Sim tenho que levar o Gabriel à escola dos sonhos. Desde que ele um dia descobriu a minha nuvem e entrou nas minhas histórias, que me pede para o acompanhar todos os dias à sala do meu professor Pinheiro.
            - Então, mas se nós estamos os dois no sonho do Gabriel onde raios está o Gabriel?
            - Está sempre algures por aí. Nós podemos não estar a vê-lo, mas isto que se está a passar agora faz parte do sonho dele.
            - ALTO E PÁRA O BAILE! - gritou a voz do Gabriel vinda de trás deles, enquanto os contornava com as mãos nas ancas, e prosseguia a reclamação olhando directamente para o Tomás: - O que fazes aqui, em pijama, e na minha história? O Avô está no meu sonho porque eu lhe pedi para me levar à escola. Mas como é que tu foste capaz de entrar aqui?
O pobre do Tomás ficou muito atrapalhado, quis dizer algo, mas não lhe ocorria nada. Perante tal silêncio, o avô adiantou um argumento:
            - Bom, sabes, é que ele não conseguia dormir e veio ter comigo e fui eu que decidi trazê-lo.
            - Pois, mas tu sabes que este é o MEU sonho! – protestou o Gabriel
Com um enorme aperto no peito e uma lágrima a querer espreitar, o Tomás desatou a fugir e foi esconder-se no meio de umas rochas que afloravam na margem esquerda daquela estrada. Esteve ali algum tempo, e como tudo permanecesse igual, resolveu dar uma mirada para a estrada. Para seu desespero, viu o avô afastar-se com um ar preocupado, gesticulando com o seu irmão, prosseguindo de mão dada ao Gabriel, na direcção da escola do professor Pinheiro. O Tomás que era valente não se atemorizou. Pensou que afinal aquilo tudo não passava de um sonho e que bastava adormecer ali para estar tudo resolvido.
            - Tlock! - ainda não tinha acabado de pensar isto, eis senão quando um seixo redondo lhe bate na cabeça vindo de cima, algures das rochas do topo. Com a mão no cabelo, amaciando o lugar do impacto, Tomás, desconfiando que estaria a ser espiado, olhou para cima para ver o que era aquilo. Trepou as pedras até ao topo e ao longe a sua vista alcançou o edifício da escola que já estava com a porta encerrada. Pareceu-lhe também ver o avô sentado à porta a descansar à sombra do alpendre. Foi então que decidiu descer daquelas pedras frias e ir ter com o avô. Tinha sido mais fácil subir do que descer de modo que teve que empregar toda a sua concentração para não cair. Quando passava de um patamar para outro apanhou um susto ao ser barrado por dois cães, os presumíveis culpados da “pedrada” que levou na cabeça. Foi mesmo só um susto, porque aqueles dois animais, o Panchito e a Maluca, de caudas a abanar suplicando festas, eram seus companheiros diários de brincadeira lá em casa.
            - Que andam por aqui a fazer? – perguntou o Tomás mais aliviado e sem esperar uma resposta.
            - Sabes… -respondeu o Panchito provocando um ar de espanto no rosto do Tomás que nunca o tinha ouvido falar -  É que na semana passada o Gabriel adormeceu na espreguiçadeira do jardim. A gata Lamúrias, que fugia das nossas correrias, saltou para dentro da nuvem que ele tinha por cima da cabeça. Ora nós que pensávamos que a nuvem lhe estava a fazer mal, decidimos atacá-la. Assim que saltei para a morder caí lá para dentro. Quando a Maluca me viu ser engolido desatou a ladrar, o que fez com que o Gabriel acordasse justamente no momento em que ela saltava cá para dentro. E, está claro, os nossos sonhos estão agora prisioneiros dos sonhos do Gabriel.
            - Bom! – disse o Tomás – Eu sei como podemos sair daqui: basta adormecer antes do Gabriel acordar.
            - NÓS SABEMOS! – ladraram os cães em coro.
             - Só que connosco isso não resulta – observou a Maluca - pois se o Gabriel não nos voltar a ver no seu sonho não poderemos regressar aos nossos.
            - Mas vocês estão no sonho do Gabriel e eu sei onde ele está! Venham comigo!
Desceram das pedras e o Tomás levou os seus amigos pelo caminho que conduzia ao edifício da escola. Ao fim de dez minutos, reparou que, à medida que andavam, o edifício se afastava, mantendo sempre a mesma distância em relação a eles.
            - É impossível lá chegar - suspirou o Panchito – Quanto mais andamos, mais a escola se afasta até que acabará por desaparecer.
- Nós já tínhamos tentado isto mas sucedeu o mesmo! – acrescentou a Maluca sentando-se no meio da estrada.
O Panchito seguiu o exemplo da Maluca, e deitou-se, e o Tomás olhou para o céu na esperança desesperada de ver alguma coisa que lhe desse uma pista. E não é que teve mesmo uma ideia? Ao ver uma nuvem que passava sugeriu:
            - Venham comigo até à sombra daquela árvore. – propôs o Tomás com decisão.
Chegados ao local, o Tomás expôs o seu plano:
            - Sabem, podíamos tentar uma coisa?... Esta sombra é óptima para se tirar uma sesta e eu já estou a sentir-me um pouco cansado com toda esta aventura, o que significa que não tarda estarei a dormir. Se adormecerem junto a mim dentro do sonho talvez acordem comigo fora dos sonhos. Que dizem?
Os dois cães ladraram a dizer que sim e abanando a cauda anicharam-se obedientemente encostados ao menino. Em cima da árvore, sem ninguém se aperceber, enrolou-se entre dois troncos a gata Lamúrias. Fecharam os olhos com toda a força para chamar o sono, mas para, seu desânimo, continuavam mais despertos que nunca. Nisto, vindo do fundo da estrada, escutam um balido: - Mééé!
 - Olha! – diz o Tomás – Uma ovelha!
- Uma não, duas! – ladra a Maluca
 - Três! – ladra mais alto o Panchito
 - Quatro! – diz novamente o Tomás enquanto o ruído de chocalhos se multiplicava.
 - Cinco! – gritam os três.
E, enquanto o rebanho passava à frente deles o coro continuava: - Seis! Sete! Oito! Nove! Dez! Onze!...
Quando estavam para gritar trinta e sete, surge no meio daqueles animais de peluche uma figura esguia a correr esbaforida na direcção dos dois entretidos canídeos.
Au! Au! Au! Au! Au! Au! Au! – ladrou assim a personagem, mostrando os dentes ameaçadora, enquanto rosnava em tom de aviso: Oiçam! Eu sou o Flash e sou um galgo, por isso corro mais que uma lebre. Nada de incomodarem as minhas ovelhas! E já agora, não podem fazer um pouco mais de ar de susto? É que eu sou pago para impor o respeito…
 - Mas tu és o dono das ovelhas? – perguntou ingenuamente o Tomás.
 - Bom…Não, não sou. – corou o Flash enquanto se lhe escapava um sorriso vaidoso pelo canto da boca – Eu sou apenas aquele que faz cara de mau para manter o grupo unido. A pastora Joana, que vem lá atrás, é que manda nisto tudo. E então e os amigos o que é que fazem por aqui?
Enquanto o Tomás explicava ao galgo tudo o que tinha sucedido e o plano que estavam a tentar, o rebanho e a sua dona foram desfilando pela frente do grupo seguindo imperturbáveis o seu caminho. Poder-se-ia até dizer que nem os tinham visto não fosse o seco “Bom dia” da pastora.
O galgo, depois de escutar atentamente o relato, olhou para o Tomás e concluíu:
 - Pois foi! Teria sido uma boa ideia contar carneiros. Se isso serve para adormecer no mundo real, também deve funcionar nos sonhos, só que agora eles já lá vão.
E saíu a correr apanhando em três tempos o grupo que já se sumia na curva da estrada.
Ainda o ruído das patas dos animais se fazia ouvir e já uma estranha melodia parecia aproximar-se daquele lugar. Ao longe, na entrada do caminho, surgem então dois miúdos, de tez escura e pés descalços, tocando flauta, caminhando em passo cadenciado, sentindo a música. Surpreendidos com a presença do Tomás e dos dois cães acostados debaixo da azinheira, os miúdos fixaram-nos de olhos arregalados por uns instantes e, repentinamente, desataram a rir à gargalhada.
- Que belo quadro – zombou um deles – Dois rasteirinhos a montar a guarda a um menino de pijaminha. Expliquem-me lá a que se deve esta anedota? 
O Panchito, que não gostou nada do comentário respondeu, apertando os dentes: 
- Oiçam lá! E, se em vez de gozar com a situação, nos dessem uma ideia para sair deste sonho e regressar à nossa casa.
 - Temos que adormecer e sair daqui antes que o Gabriel acorde! - completou o Tomás com um ar sério e impaciente.
Confuso o outro miúdo sugeriu: - Eu cá não percebo nada disso, mas, quando eu era pequeno, adormecia com uma cantiga que a minha mãe me cantava. Podemos experimentar tocá-la na nossa flauta. 
Com desconfiada esperança, o Tomás fechou os olhos esperando a canção, que, por fim, repartida entre voz e instrumento saiu assim:
Era uma vez
Um gato Maltês
Que tocava piano
E falava francês.
Tocava uma vez
O piano francês
Falava com o gato
Num acorde chinês.
O gato uma vez
Armado em Marquês
Arranhou o piano
Como uma turquês.
O piano francês
Com desfaçatez
Trilhou-o com a tampa
De uma só vez.
E o gato Maltês
Assim feito em três
Largou o piano
Que era francês
E perdeu o rabo
Daquela vez...

Desta vez foi a Lamúrias que perdeu as estribeiras. Que maneira era aquela de dizer mal dos gatos?! Saltou de cima dos ramos da azinheira, e, com o pelo todo eriçado, bufou assim:
PFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF!!!! Qué se marchen ustedes de mi vista! – é que a Lamúrias tinha ascendência espanhola e, quando lhe picava a mostarda no nariz, puxava logo dos seus galões.
Os dois rapazes nem quiseram saber mais, largaram as flautas e desataram a fugir.
E assim, mais uma vez, não teve efeito uma possível ajuda aos nossos heróis, que continuavam despertos e preocupados.
Pouco a pouco foi escurecendo e uma brisa fresca foi entrando no pijama do Tomás. Mesmo com o aconchego dos dois cães os arrepios eram inevitáveis até porque o escuro também contribui com a sua parte de desconforto. No céu, entretanto, foi aparecendo o brilho das estrelas, que, estando inicialmente imóveis, a partir de certa altura começaram a rodopiar. Faziam um bailado tão perfeito que o Tomás por momentos se esqueceu da necessidade de dormir. À medida que tempo ia passando, o bailado ia fazendo convergir todas as luzes para o mesmo lugar até que por fim todas as estrelas se uniram numa única grande bola branca no firmamento.
            - A Lua! – disse baixinho o Tomás para não acordar os dois cães que pareciam já ter adormecido.
No minuto seguinte, enquanto o Tomás procurava manter os olhos abertos para apreciar aquela cena invulgar, uma nuvem foi crescendo no céu ocultando gradualmente o luar e devolvendo assim a escuridão àquela cena campestre.
Quando, no regresso da escola, o avô e o Gabriel passaram por eles, estavam todos a dormir profundamente.
            - Avô! Olha lá para aqueles três dorminhocos! – disse o Gabriel em surdina.
            - Deixa-os dormir que estão ferrados.

Pela manhã, como de costume, a mãe foi acordar os dois meninos. O Gabriel, que adora ir para a escola, já estava acordado e sentado na cama, de modo que quando a mãe entrou, e antes que esta tivesse tempo de lhe dar os bons dias, exclamou:
            - Que sonho mais estranho tive esta noite!
Beijando-lhe a testa a mãe descansou-o:
            - Sonhos são sonhos e nada mais do que isso!
De seguida foi ao quarto do Tomás que permanecia em silêncio e com a porta fechada. Rodou a maçaneta devagar mas assim que a entreabriu, saltaram a correr pregando um grande susto à mãe, à frente a Lamúrias, e atrás em perseguição, o Panchito e a Maluca.
            - Tomás! Ó Tomás! Quantas vezes te tenho dito que não quero os animais a dormir cá em cima! - barafustou a mãe ainda atordoada com a algazarra.
            Estremunhado o Tomás, bocejou, sentou-se na cama, espreguiçou-se, e ainda meio a dormir, exclamou com um sorriso nos lábios:

            - RESULTOU!!! 

29.2.12

sketchiphonic.blogspot.com


Acabo de descobrir o SketchbookX da Autodesk para o iPhone. É o meu diário gráfico que publico num blogue chamado sketchiphonic.

1.2.11


JÁ QUE A VIDA É CURTA

“já que a vida é curta
e o futuro, diz que está aqui já
(sei lá)
já que o futuro vem
em peças separadas p'ra montar
(ah! ah! ah! ah!)
antes que se esgote
reserve desde já o seu exemplar”

“Sérgio Godinho” CARAMBA


Três ideias sobre o tempo….


Afinal o que é que existe, o passado, o presente ou o futuro?

Só pode ser o passado. Evidentemente.
Actos e produtos ficaram todos lá. Mas será que ainda lá estão?
Certo certo é que tudo o que tocamos agora veio do passado, seja ele próximo ou distante.
O passado é o único tempo sobre o qual se verificam teses ou pairam arrependimentos.
O passado tem uma estabilidade fotográfica, e mesmo quando contamos uma história é como se olhássemos para uma destas modernas molduras digitais que guardam fragmentos aleatoriamente organizados.

Mas haverá apenas um passado, ou será que antes pelo contrário serão em número infinito os tempos simultâneos que interagem entre si?

Neste caso então, pensando bem, o que existe realmente é o presente. É aqui que agarramos o efémero e lhe conferimos vida, cor, temperatura, cheiro, gosto, toque, materialização ou sublimação. É no presente que transformamos os “por fazer” em “em curso” e, simultaneamente, esperamos pelo arrefecimento do “produto acabado”.

Mas será o presente um único tempo, ou cada um respira o seu? À minha volta entram e saem figurantes que quando não fazem parte do meu jogo fazem de outro que jogam sempre, o seu. Pois é, na verdade há infinitos presentes a esvaírem-se autonomamente.

Afinal será que o que existe é o futuro? De lá é que nos hão-de vir as estradas para caminhar e as sombras para descansar. Quando fazemos algo é para que esse algo surja no minuto seguinte, para o ano que vem ou um dia quem sabe… Fazemos tudo para que o futuro aconteça.

Mas será que poderíamos escolher futuros diferentes?

Parece por vezes que olhando o futuro estamos a incendiar o presente e a deixar marcas no imaginário do passado; que olhando o presente estamos apenas a olhar para nós; e que olhando o passado nos esquecemos que existimos.

Não obstante, e porque não será a tomada de consciência de qualquer dos casos que evitará que assim suceda, poderemos felizmente concluir que, passado, presente e futuro, tanto nos faz que existam três, apenas um, nenhum deles ou apenas nós, porque afinal aquilo que nos move não são os tempos classificados e medidos, mas antes esta continuidade que nos permite alternar entre teimosos sobreviventes e deslumbrados crentes.